Por Globo Esporte Quinta-Feira, 16 de Janeiro de 2025
O trajeto entre o hotel em que o Flamengo está hospedado em Gainesville e um dos campos que o time usa na pré-temporada leva cerca de 10 minutos caminhando. Pela proximidade, membros da diretoria e da comissão técnica costumam ir e voltar andando do estádio Donald Dizney. O diretor de futebol José Boto aproveita a caminhada para discutir assuntos do departamento com seu braço direito, o também português Alfredo Almeida.
Na quarta-feira, o ge pegou uma "carona" com Boto, que concedeu sua primeira entrevista exclusiva a um veículo de imprensa no Brasil. A caminhada que costuma durar 10 minutos aconteceu em 20, com o português abordando alguns dos principais pontos deste início de trabalho no Flamengo. Além de Alfredo, o diretor está sempre acompanhado de um segurança do clube.
VEJA ACIMA O VÍDEO COMPLETO DA ENTREVISTA COM JOSÉ BOTO
José Boto fez carreira na Europa como chefe de scouting, passando por clubes renomados como Benfica, de Portugal, e Shakhtar Donetsk, da Ucrânia. Estava no Osijek, da Croácia, antes de ser contratado pelo presidente Bap para reestruturar o departamento de futebol do Flamengo. Ele chegou ao Rio de Janeiro no dia 28 de dezembro, com uma janela de transferências em andamento.
José Boto e Filipe Luís têm mapeado juntos reforços para o Flamengo — Foto: Gilvan de Souza / CRF
ge: você chega ao Flamengo depois de anos de experiência na Europa, principalmente como chefe de scouting. Agora como diretor de todo o departamento de futebol, quais suas prioridades no Flamengo? O que pretende mudar para já no funcionamento do clube?
José Boto: o scouting é fundamental em todos os clubes. Para mim é uma das áreas mais sensíveis e importantes de um clube de futebol. Não só pela ligação que eu tenho por ter vindo do scouting, mas porque acho que é um departamento muito importante. Vou reestruturar o departamento, mas neste momento ainda não tive tempo para fazer isso. Tenho ideias, mas das ideias à prática tem sempre um período de observação, e ainda não tive a possibilidade de fazer.
- O projeto é ajustar algumas coisas, daquilo que já foi muito comentado de fechar o CT, é o que diz minha experiência. Quanto menos gente ao redor da equipe profissional melhor é em todos os setores. Trabalha-se com mais calma, há menos vazamento de matéria sensível, e isso é uma prática comum na Europa. São coisas que se implementam logo: quantidades de pessoas que viajam com a equipe, quem pode assistir ao treino... Isso já está perfeitamente implementado desde que cheguei e dei essas diretrizes, que são debatidas com a comissão técnica, não parte só de mim. Debatemos e vemos o que é melhor antes de fazer as mudanças.
- A próxima vai ser termos um departamento de scouting à minha imagem. Não estou dizendo que está ruim desta forma, mas o departamento tem que perceber exatamente aquilo que nós queremos para o Flamengo. Isso leva tempo e esse fato tem reflexo nesta janela, que não está sendo feita com a metodologia que eu gosto de fazer, que é o scouting dar-nos os nomes, nós analisarmos com calma. Isso não foi feito nesta janela, na próxima já vai ser mais à minha imagem.
Como tem sido feito nesta janela?
- O processo utilizado nesta janela, que felizmente não precisamos de tantos jogadores, tem muito a ver com a minha experiência e a do Filipe Luís: identificar alvos que nós conhecemos muito bem para serem os reforços do Flamengo.
O primeiro reforço do Flamengo de Bap e Boto é Juninho, um atacante pouco conhecido no Brasil e que estava no Azerbaijão, um mercado imprevisível. Este vai ser o perfil de contratações do clube?
- O perfil de contratações vai ser o jogador que serve para o nosso modelo de jogo. Se vem do Azerbaijão, se vem do Cazaquistão ou de outro país qualquer, isso não é importante. O importante é que tenha o perfil que procuramos. Aquilo que quero implementar é o que o departamento de scouting nos dê mais Juninhos. É um jogador que Filipe e eu conhecíamos, não vem do scouting, mas através do nosso conhecimento geral do mercado e que se encaixava perfeitamente nas características que nós procurávamos para o atacante do Flamengo neste momento. Mas o processo correto vai ser o scouting dar-nos Juninhos para observarmos, debatermos e contratarmos o melhor.
Você disse que a decisão da permanência de Filipe Luís foi sua. Muita gente estranhou, porque o Filipe, no pouco tempo de profissional, fez bom trabalho e terminou bem o ano, campeão da Copa do Brasil. A continuidade era natural. Por que isso precisou ser discutido? E qual o papel do Filipe nas decisões sobre o elenco?
- O papel do treinador tem que ser fundamental na montagem do elenco. Não vale trazer jogadores que não cabem no modelo de jogo do treinador, isso é uma estupidez completa. Quando entra uma direção nova e quer ter um diretor responsável por todo o futebol, o mais importante cargo na estrutura é o do treinador, e é natural que quando começamos a conversar eu pontuei que o treinador teria que ser uma escolha minha. Depois de uma análise profunda e da qual não me arrependo até hoje, decidi por continuar o Filipe. E ele tem uma participação intensa naquilo que é a montagem do elenco.
- A grande prioridade foi manter este elenco. Todos sabem que existem algumas dificuldades financeiras, não seria possível fazer grandes contratações. Mas esta também não é nossa maneira de ver o esporte, jogador para ser bom não tem que ser caro. A minha prioridade foi manter os jogadores que nós achamos cruciais para o treinador. Não vai sair ninguém que nos faça uma falta enorme. Esta é a grande vantagem do Flamengo nestes primeiros seis meses. Agora, não é preciso ser muito inteligente para perceber que vamos ter que buscar um zagueiro, mas vamos com calma. A próxima janela já vai ser diferente. Quando ela abrir já saberemos o que queremos. Agora, por causa das eleições que ocorreram 20 dias antes do início da temporada, é tudo mais complicado fazer. Por isso estamos com calma e mais análise para escolhermos o elemento certo que irá suprir essa falta.
Até o meio do ano, o trabalho de observação de jogadores continua. Como funciona essa análise ao longo do ano, mesmo com a janela fechada?
- Há um trabalho agora da minha parte de identificar possíveis lacunas daqui a seis meses, possíveis saídas daqui a seis meses, e a partir daí nós focamos nestas posições. Há um trabalho do scouting para identificar jogadores nestas funções, que estejam de acordo com o modelo de jogo, com o dinheiro que temos para gastar, que tenha o perfil. Depois de identificados são analisados por mim e depois pelo treinador.
Quando você fala sobre a manutenção do elenco nesta janela e possíveis saídas no meio do ano, como o Flamengo quer se posicionar quanto à venda de atletas? Sabemos que Wesley é hoje um dos mais cobiçados e tem recebido propostas...
- Faz parte de um planejamento, temos que ter uma ideia e perceber o mercado internacional de quais jogadores podem eventualmente receber propostas irrecusáveis para nós e para eles também, e estarmos preparados para isso. Este planejamento já está feito, não é difícil perceber quais jogadores podem ter mercado. A partir daqui é identificar jogadores que possam suprir essas possíveis vendas e, ao mesmo tempo, sermos firmes naquilo que são os valores que achamos ser justos para alguns jogadores.
Flamengo espera receber mais de 30 milhões de euros por Wesley na segunda janela — Foto: Gilvan de Souza/CRF
Tem surgido nomes de medalhões na mira do Flamengo, como Jorginho e Danilo. Até que ponto vale investir em jogadores mais experientes como eles, sabendo que possivelmente não darão um retorno financeiro lá na frente?
- O elenco deve ter jogadores mais experientes e mais jovens. É óbvio que a partir de uma certa idade os jogadores já não têm mercado, principalmente para a Europa, que paga valores maiores. Há por outro lado também uma ideia nossa de rejuvenescer o elenco, não pensarmos só na perspectiva de fazer dinheiro com os jogadores, mas também de termos a segurança de nos próximos três, quatro, cinco anos termos jogadores que tenham o nível do Flamengo que temos hoje em dia. Mas há sempre oportunidades de negócios, de jogadores que nos vão acrescentar algo desde que esteja dentro das nossas possibilidades. Se não estiver, não vamos trazer.
Você elogiou o elenco várias vezes, e a estrutura do clube também. Mas e fora de campo? Acha que o departamento de futebol do Flamengo está atrasado em comparação com o que conhece na Europa? O que é mais urgente fazer?
- Não acho que esteja muito atrasado. Sinceramente acho que há algumas "dobragens" de funções, pessoas que fazem exatamente a mesma coisa que os outros, o que não é necessário. Como não sou apologista de revoluções, gosto de analisar bem para depois fazer as mudanças na altura certa e com justificativa certa para estas mudanças. Uma das coisas que já vou dar uma atenção muito forte é o scouting, não porque funcione mal, mas tem que funcionar para o que é minha ideia no Flamengo. E isso vai ter que ser feito rapidamente porque não quero que aconteça na próxima janela o que aconteceu agora, que é estarmos trabalhando com meu conhecimento e o conhecimento do Filipe, e não com base estruturada do que vem do scouting. Não é uma crítica a eles, é uma ideia diferente que havia de perfil de contratações, que não é aquela que a gente queria neste momento.
Você fala muito sobre base também, tem uma rede de contatos grande no Brasil neste cenário. O que pensa para a base do Flamengo? Quando você diz ser fã do futebol de rua, como implementar isso no clube?
- Não é uma coisa tão complicada, mas às vezes as pessoas só entendem como querem. O fato de eu achar que o futebol brasileiro tem que voltar um pouco aquilo que são suas características e sua identidade não quer dizer que tudo o que é modernidade, que ajuda ou aproxima o futebol brasileiro do europeu tem que ser jogado fora. Não. O que eu disse é porque vieram muitos clubes da Europa buscar ideias daquilo que era a formação no Brasil e estão neste momento a formar jogadores mais criativos, mais talentosos do que o Brasil. Isso tem a ver com o fato de alguns dos fundamentos que fazem dos futebolistas brasileiros únicos estejam sendo desincentivados no início da formação do jogador. Há muitos treinadores na base como se estivessem treinando equipes profissionais. O conceito deve ser formar o jogador independentemente daquilo que pensa o treinador em termos de sistemas táticos, mas lhes dando os fundamentos típicos do futebol brasileiro e que fazem com que os europeus venham aqui buscar tantos jogadores. Costumo dizer que se for para buscar jogadores fortes e intensos eles vão à Dinamarca que são mais baratos. Aqui eles vêm buscar talentos.
Como é o dia a dia de um diretor de futebol em meio a uma janela de transferências, tendo que implementar uma nova filosofia no clube?
- É complicado porque eu cheguei agora, com a janela em andamento, mas ao mesmo tempo gosto de acompanhar e perceber as dinâmicas da equipe, o modelo de jogo, e isso envolve muitas conversas com o treinador para podermos estar em sintonia perfeita. Mas ao mesmo tempo esta janela envolve muitas ligações que não podem ser feitos perto dos jogadores ou da comissão. Há uma ginástica muito grande de horários. Meu dia começa às 6h já com muitas chamadas telefônicas e mensagens, depois converso com o Filipe sobre o que eu vejo e as impressões dele, sempre com o telefone a tocar. Tento reservar um tempo para as demandas da janela, porque nós sabemos o que queremos, mas os agentes não sabem disse e nos bombardeiam. Lidar com isso e estar atento ao que se passa no campo é um processo que exige. Outro dia estávamos em uma reunião que durou uns 45 minutos e quando peguei meu celular tinham 145 mensagens no WhatsApp. Tento atender a todos.
Alguma dessas mensagens era do Jorginho, do Danilo ou de algum zagueiro que está encaminhado?
- Eram do Cristiano Ronaldo, do Messi, do Ney (risos). Existe a prioridade que é o zagueiro, sabemos o que queremos, e quando quero alguma coisa vou até não ser possível. Não vou divulgar o que queremos porque isso prejudica o Flamengo.